sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

As veias abertas da Transposição: uma retrospectiva

No momento em que as discussões em torno do famigerado Projeto de Transposição das águas do Rio São Francisco voltam a ocupar um lugar de destaque na esfera pública não nos é possível, até mesmo por uma proximidade geográfica, deixar de colocar nossa opinião sobre este palpitante assunto. Uma primeira observação que merece ser feita diz respeito ao motivo pelo qual as discussões foram impulsionadas: A chamada “greve de fome” do bispo Dom Luiz Cappio, ou, como preferimos enxergar, até mesmo por uma proximidade ideológica, o jejum de Dom Luiz Cappio.

Pois bem, terminado o jejum do bispo, a grande questão que fica (ficará) martelando nossas consciências é: Por que o sangue que jorra molhando os rostos abobadados da apatia social é mais relevante do que a artéria aberta? Ou, para ser mais claro, até quando a mídia será uma mediadora de espetáculos, em detrimento das “veias abertas” de nossa sociedade?

Estas questões, inevitavelmente, nos fazem viajar de volta para o passado em pelo menos dois anos. No dia 26 de setembro de 2005, na cidade de Cabrobó (PE), o bispo de Barra (BA) Dom Luiz Cappio resolve fazer jejum para chamar a atenção da sociedade brasileira ao projeto de Transposição, naquela época, orçado em R$ 4,5 bilhões. Conseguiu. De repente, não mais que de repente (diria o poetinha), a sociedade tomou conhecimento do “Projeto de Integração do rio São Francisco com as bacias do Nordeste Setentrional”, como diria o então Ministro da (des)Integração Nacional, Ciro Gomes.

Cadernos especiais dos grandes jornais e revistas brasileiros e séries especiais das maiores emissoras de TV acompanharam de perto os 11 dias de jejum do bispo. Um tema sem nenhuma pretensão de adentrar no horário nobre, haja vista ser um fato regional e, pior, da região nordeste, tomou conta do noticiário nacional. Lula, de barriga cheia, mas com fome de votos para o período eleitoral que se avizinhava, enviou uma carta no quinto dia de jejum. Não obtendo uma resposta favorável, cinco dias depois enviou um carteiro, o então Ministro das Relações Institucionais, Jacques Wagner, para negociar o fim do jejum.

Na conversa que tivemos em Sobradinho com o comerciante aposentado João Franco Cappio, irmão de Dom Luiz Cappio, uma coisa ficou muito clara: Wagner fez em Cabrobó um jogo político de cartas marcadas. A tarefa que lhe foi imposta pelo presidente Lula era muito clara: dê um fim ao jejum do bispo, mesmo que tenhamos de revogar qualquer compromisso assumido pelo Governo. Não deu em outra. O compromisso de abrir “ampla discussão, participativa, verdadeira e transparente, até que se construa um Plano de Desenvolvimento Sustentável, baseado na convivência com todo o Semi-Árido, para o bem de sua população, priorizando os mais pobres” nunca foi e, pelo visto, nunca será concretizado.

A mídia, como sempre, passou a impressão à sociedade de que os 11 dias de jejum do bispo correspondiam a 11 capítulos de uma novela, com direito até a final feliz. A repercussão ao famoso encontro de Dom Luiz com Lula, no dia 15 de dezembro de 2005, não acompanhou nem de perto a mesma cobertura dada ao período de jejum do bispo, de 26 de setembro a 6 de outubro. Poucos jornais publicaram a última falácia de Lula sobre a Transposição (do ano de 2005, é claro), que prometia, num tom de véspera de natal, a ampla participação da sociedade nas discussões em torno do projeto.

Mal o ano de 2006 apontava no horizonte e o Governo vivia às voltas com a expectativa do início das obras. Naqueles idos, o que mais angustiava Lula não eram nem as ações contrárias ao projeto que corriam no Superior Tribunal Federal, mas antes, o que fazia Lula perder o sono era um tal artigo 77, da lei 9.504, que afirmava o seguinte: Em ano eleitoral, nenhuma obra pode ser inaugurada com a presença de candidatos ao Executivo três meses antes das eleições. O lema do Brasil naquele período era o famoso: “Quem tem fome tem pressa”. Lula tinha fome de votos.

Mas “a pressa é inimiga da perfeição”, diz o ditado popular. No programa de governo do PT, um caderno de 30 páginas cuidadosamente confeccionado para ser o mais plural possível, ou seja, para agradar a gregos e baianos, a transposição do rio São Francisco tornou-se um eufemismo usado pelos que são adversários da obra: "revitalização". Mais uma jogada política? No vale-tudo da campanha eleitoral esta expressão é que acaba soando como um eufemismo...

O resultado das urnas parece que deu um fôlego ao Governo Federal, que iniciou o ano decidido a tratorar tudo, principalmente a discussão. O fato de o governo do estado da Bahia não ser mais um tijolo no sapato imperial, com liminares atrás de liminares, deve ter revitalizado os propósitos do ministério da integração. A mudança de governo em Sergipe também foi um fato bem representativo, apesar de o governador petista Marcelo Deda ter afirmado diversas vezes ser contrário ao projeto. Mas, neste caso, sempre há a possibilidade de um eufemismo para decretar silêncio oficial por um longo período.

No lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em janeiro de 2007, olha quem aparece como a principal fonte de investimento na área de infra-estrutura hídrica? A obra de transposição do rio São Francisco já tinha até data e lugar marcados para começar: início de fevereiro, em Cabrobó (PE). “Mas, se ergue da justiça a clava forte/ verás que um filho teu não foge à luta”, afirma o nosso hino nacional, em tom eloqüente. Lá vai o bispo de volta à frente de batalha.

O carnaval, nós sabemos, é um período de anestesia social, em que boa parte das consciências se encontra num estágio entre embriagadas e ressaquiadas. Outras consciências, inquietas, se municiam ainda mais. Poucas pessoas sabem, mas um dia após a Quarta-feira de Cinzas de 2007 Dom Luiz Cappio protocolou no palácio do planalto uma carta em que pedia a reabertura de diálogo com o presidente Lula. “Não pode ser um diálogo entre quatro paredes, todos têm de participar”, era uma das frases da carta. A resposta do Governo veio rápida: sai Pedro Brito do ministério da integração e entra Geddel Vieira Lima.

Por ser da bancada baiana no Congresso Nacional e já ter se manifestado contra a Transposição em outros momentos, a escolha de Geddel parecia sinalizar o início de uma atitude dialógica do governo com os movimentos sociais de oposição ao projeto. Ledo engano. Se em Juazeiro o carnaval costuma ser antecipado, no ministério da integração as fantasias costumam chegar com quase um mês de atraso. Este ano o Ministro teve de vestir uma fantasia especialmente escolhida para ilustrar a ocasião: a de Gregor Samsa, personagem do livro “A metamorfose”, de Franz Kafka. Já em seu discurso de posse, prometeu "transformar em realidade o sonho do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de levar água ao semi-árido do Nordeste". Deu-se início à ambulante metamorfose.

Uma semana após o discurso do “mais novo” Ministro da (des)Integração, o presidente do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) assinou a licença de instalação do projeto de Transposição. Depois disto, o Ministério Público Federal do Distrito Federal recomendou que não fosse autorizado o início da obra antes de serem promovidas audiências públicas para discutir seus estudos ambientais, a Ordem dos Advogados do Brasil, de Sergipe, entrou com uma ação popular no STF (Supremo Tribunal Federal) contra a decisão do governo de iniciar as obras de transposição, Movimentos sociais contrários ao projeto reforçaram a mobilização etc. Veio o “Abril vermelho”, o maio cinzento e em junho 50 homens deslocados do 2º batalhão de engenharia do exército deram início às obras, em Cabrobó-PE.

A resposta dos movimentos sociais, sindicatos e comunidades tradicionais, como indígenas e quilombolas, veio na madrugada do dia 26 de junho, quando cerca de 1200 pessoas fizeram um acampamento com barracas de lona plástica formando um grande círculo no canteiro de obras. O Ministério da (des)Integração Nacional logo se apressou em enviar um interlocutor para Cabrobó. O ministro Geddel Vieira Lima afirmou aos jornais, tomado de uma hipocrisia sem fim: "Nós queremos um diálogo, sim, mas o governo, pelo menos na minha área, não pode ficar refém absolutamente de ninguém. Não se pode começar um diálogo com um 'exigimos que pare a obra'". Só faltou completar: Mas se pode começar a obra com um “exigimos que pare o diálogo”.

Naqueles idos, nós, estudantes da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), já estávamos a quase um mês em greve docente, iniciada no dia 28 de maio. Infelizmente, quando o movimento foi iniciado em Cabrobó já havíamos nos dispersado. Mesmo assim, algumas pessoas, inclusive que compõem o CACos, tentaram se organizar para ir ao canteiro de obras do projeto de Transposição. Mas, decorrida uma semana de ocupação e pressionados pelo pedido de reintegração de posse da área ocupada, as pessoas que estavam participando das manifestações em Cabrobó chegaram à conclusão de que o recado estava dado e iniciaram uma desocupação pacífica.

E o recado chegou a ouvidos receptivos. A partir da mobilização dos movimentos sociais, sindicatos e comunidades em Cabrobó começamos a adentrar de maneira mais intensa nos debates em torno do projeto de Transposição. Das discussões virtuais que permearam os primeiros dias de julho de 2007, surgiu a idéia de realizar um encontro de movimentos sociais do Médio São Francisco, com uma pauta bem específica: o projeto de Transposição. Num contexto bem difícil de fomentar qualquer tipo de mobilização, já que algumas pessoas entenderam o período de greve docente como “férias” fora de estação, tentamos articular este encontro com a maior seriedade possível. Apesar de poucas pessoas terem se disponibilizado a participar da organização, foram formadas comissões de comunicação, articulação com os movimentos sociais e arrecadação de patrocínio para o lanche após o encontro.

E apesar da pouca participação de noss@s colegas na discussão, não houve qualquer tipo de arrependimento por parte da comissão organizadora, afinal de contas, uma coisa temos certeza: O recado foi dado. Aquele dia significou o início de nosso processo de implicação nas discussões sobre o projeto de Transposição, resultando na produção de uma carta dirigida aos meios de comunicação locais. A semente foi plantada em solo fértil. E tanto assim que um mês depois já distribuíamos discursos sobre a transposição no Encontro Regional de Estudantes de Comunicação (ERECOM), em Sergipe.

O ERECOM ocorreu entre os dias 15 e 19 de agosto de 2007, na Universidade Federal de Sergipe, e contou com a participação do Movimento Estudantil de Comunicação (MECOM) de três estados, Bahia, Sergipe e Alagoas, que compõem a Regional Nordeste 1. O tema do Encontro já era um chamado a nossa intervenção: Comunicação e Meio Ambiente. Inicialmente, havíamos proposto à comissão organizadora um ato público contra a transposição, mas não havia tempo de inseri-lo na programação do encontro. Ficamos, portanto, encarregados de organizar uma intervenção interna, ocorrida no último dia do ERECOM. Naquela oportunidade, distribuímos panfletos sobre o projeto de Transposição e participamos oralmente no painel de “Comunicação e Meio Ambiente”, onde recitamos um cordel escrito por Daniel Senna, estudante de comunicação do DCH, e falamos sobre a importância do MECOM nas discussões em torno do projeto de Transposição.

Neste ínterim, e até o segundo jejum do bispo, fomos espectador@s/leitor@s/ouvintes de um longo silêncio midiático. Quando isto ocorre, não há dúvida de que algo de muito sério se processa longe da esfera de discussão e formação da opinião pública. Mais uma vez (já disseram que a História é cíclica), o jejum do bispo traz à tona o debate sobre as controvérsias do projeto de Transposição. A mídia toda foi pega de surpresa, e alguns meios de comunicação resolveram fazer da surpresa um motivo para ignorar os desdobramentos que o ato desencadeou. Outros acharam por bem se limitar à publicação das mais pífias declarações possíveis, tanto do ministro da integração quanto do presidente da república. Argumentos de que “a greve de fome do bispo parece chantagem” e aponta para uma “postura fundamentalista” sinalizam muito mais para uma auto-análise do processo protagonizado pelo governo federal que desencadeou o jejum do que para a atitude do bispo.

Até onde foi possível, a mídia, especialmente as “grandes” (não pela programação, mas pela audiência) emissoras de televisão, tentaram protelar a cobertura do jejum de Dom Luiz Cappio. Numa conversa que tivemos com alguns (mas) jornalistas, em Sobradinho, as justificativas para tanta ausência seriam o fator regional, a repetição (“por ser o segundo jejum, deixou de ser algo inédito”, afirmou um jornalista), a falta de um acirramento maior com o governo etc. O que ninguém citou, por razões óbvias, foi a questão da adoção do modelo japonês para a TV Digital brasileira. Será que não tem nada a ver? Pensemos: Quem seria o maior prejudicado com a cobertura do jejum do bispo? E quem foi o maior beneficiado com a escolha o modelo japonês?

Na resposta a estas questões reside o mar de sangue que escorre sob o mar de lama, nas veias abertas de um país chamado Brasil...